"Kalunga, a origem das espécies"Entrevista por Beatriz Lemos




Beatriz Lemos [BL] Você chega no Marrocos a partir de um sonho sobre o deserto. Um recado para que busque o imponderável de vida em um lugar que se transfigurou. Sentiu que precisava morar no deserto em contraponto à ilha, local onde nasceu. Se o deserto é vida em abundância, pois é um corpo-ambiente que um dia foi água, como conseguiu acessar a memória ecológica daquela terra e se reconectar com sua ancestralidade interespecífica durante a viagem?

Castiel Vitorino Brasileiro [CV] : Sua pergunta é linda, é lindo iniciarmos nossa conversa evocando os sonhos, justamente essas imagens que nos pertencem mesmo quando não as conhecemos.  Eu nasci numa ilha no Espirito Santo, Vitória, e especificamente minha comunidade fica no centro dessa ilha, num dos seus pontos mais altos, o morro da Fonte Grande. Olhar para o mar e esperar que alguém chegue ou vá embora de nossas vidas é o que aprendemos a fazer desde sempre. E aos poucos também estou aprendendo a me despedir de medos, anseios, inseguranças e aguardar boas-novas.

Em Vitória, convivemos com alteração repentina da temperatura, ainda que o calor tropical da mata atlântica nos refresque, nos deixe úmidas, ainda assim é comum que o tempo mude de uma hora pra outra e comece a chover depois de um dia de sol. Então nós é preciso nos adaptarmos a essas incônscia que me machuca às vezes, me faz passar mal… mas acabamos nos apaixonando e tornamos pertencentes a esses ritmos das marés, às danças entre o sol e a chuva.

E dai um dia eu acordei e senti profundamente que eu deveria morar no deserto. Depois de alguns meses, entendi que seria Marrocos este lugar, mesmo tendo um longo estudo e grande admiração pela região de centro-Africa, especialmente Angola, eu senti verdadeiramente que precisava criar outro caminho, não o da similaridade cultural, mas trilhar um caminho que fosse diferente, novo, desafiador para o meu reportório.Todas as equações racionais diziam para eu ir para Angola, mas algo estranho me fez contrariar e ir para o norte do continente.

Sem dúvidas, o islamismo me ajudou na conexão com as terras marroquinas, através de sua prática cotidiana de oração comunitária. A Fonte Grande é um bairro que nasce dentro da mata atlântica, e até hoje nomeamos de Boca da Mata o início da região no alto do morro onde a mata te engole, onde não há casas para os humanos. Em Marrocos existem florestas, lagos, neve, mas não as encontramos, eu estava interessada nos mares de areia... me pareciam ondas, me lembravam o mar, eu tinha medo de ser engolida e também tinha vontade de entrar por ali. Os desertos não são lugares vazios, e por isso eu orava todos os dias para encontrar a paz e lidar melhor com os conflitos de minha adaptação, que foi um conflito sobre origem. 

Chegamos em Marrakesh durante o Hamaddan, e fui aprendendo sobre a importância da tâmara, da agua e do silencio para aquelas pessoas. Fazer a minha própria comida, todos os dias, me fez assentar as coisas, fui aprendendo a criar um novo chão, e a escolhar novas vidas para serem plantas ali. Acho que a conexão foi se dando ai, em aprender novas formas de me alimentar, em todos os sentifos.




BL: Kalunga, a origem das espécies é uma pesquisa de longa duração. Ou melhor dizendo, de infinda existência. Isso porque a abordagem que define para o projeto é justamente transpor à Kalunga a origem do universo - ao fim e ao começo em constante circularidade. A define como força de transmutação e princípio de metamorfose. Você acha que Kalunga foi interpretada de forma equivocada e racista pelas definições teóricas de base branco-colonial? Os ideais raciais e primitivistas contribuíram para uma violência filosófica como conceito?

CV: Sim, certamente há uma interferência colonial nas experiências kalungueiras, por assim dizer. Digo, a questão da palavra e sua tradução, de fato existe, e nos conduz a pensar Kalunga como sinônimo de morte enquanto o fim, ou seja, uma tristeza. No Brasil, a palavra sobrevive em sua força de vida pós-morte, aqui nossas comunidades compreendem Kalunga como cemitérios, lugar das almas descansarem e trabalharem. Eu também defendo Kalunga como um princípio de transfiguração. Kalunga é um momento de morte, decantação e gestação, tudo junto. Kalunga é uma oportunidade de mudança irrevogável, ainda que criminalizada e demonizada. Kalunga é uma força de transformação, Kalunga é a vida em seu mistério indescritível. Kalunga é a vida além da palavra. Isso fere o pensamento colonial, fere nossa crença cultural colonial de que nascemos defeituosos. A expendia anunciada pela palavra Kalunga, a força anunciada por essas letras, rasga a história de que somos incapazes de mudar nosso destino anunciado pela violência racial, ou seja, quebra a maldição do esquecimento, rasga a história de que não temos passado, de que nascemos do pecado e somos deficientes de alma. Então tudo muda. Kalunga é mudança.




BL: Quem acompanha sua produção artística reconhece o transe, a transmutação e a disciplina espiritual como parte de um conjunto de metodologias de trabalho que estão sempre presentes, se materializando no discurso e na estética. Pode contar um pouco sobre essa pesquisa em sua forma prática? Como você estrutura Kalunga, a origem das espécies enquanto projeto alargado no tempo? Como que ela se mostra em presença no cotidiano, seja em viagem, seja em sua casa ou ateliê?

CV: Eu quero me tornar uma artista capaz de dominar várias disciplinas artísticas, e tenho me dedicado nesse estudo técnico das artes. Sinto que cada tecnica possui realmente uma forma de anunciar a história, como se a cerâmica contasse sob um ponto de vista diferente do desenho e do vídeo, e todos esses pontos de vistas são privilegiados. Eu amo isso, sentir que há histórias que não consigo contar com a fotografia, e que eu preciso pintar, desenhar ou criar uma instalação para assim realizar meu desejo da anunciação.

O projeto Kalunga é para muito tempo, quero vive-lo sem me preocupar com o tempo. Kalunga também anuncia uma experiência temporal, estranha, difícil de descrever… realmente como algo que vivo em cotidiano nos meus espaços de criação. Sabe, quando eu estou criando, é estranho… Agora mesmo, escrevendo, alguma coisa acontece, perco noção de espaço e tempo, me sinto presente, me sinto viva, minha respiração é calma, e o tempo já dilatou. Isso é um transe? Isso é kalunga? Isso é medicinal, espiritual? Certamente, a experiência de criação é sublime, sagrada, comunitária e cotidiana. Certamente, essa é a nossa origem, digo, a arte.




BL: A viagem ao Marrocos foi prenunciada pela espiritualidade como uma experiência de grande impacto cultural. Não à toa, você escolhe iniciar seu percurso em África por este país que é tão distante do Brasil em termos de costumes. Vivenciar no corpo e no espírito essas diferenças de visões de mundo foi importante para você? Quais foram os mais significativos aprendizados e atravessamentos desse período?

CV: Sua pergunta é muito importante, obrigada por ela. Muitos sabem do meu pertencimento nas culturas vindas da região Ndongo, ao que hoje nomeamos de culturas bantu, e no brasil também dizemos culturas congo-angola. Eu nasci na diáspora brasileira desses conhecimentos, e tenho orgulho de fazer parte dessa história de maneira tão verdadeira.


Desde pequena participo de vários ritos de passagem bantu-brasileiro. Ir para o Marrocos e viver o islamismo foi uma das decisões mais contraditórias e saudáveis que eu pude tomar até agora. Lá, eu não sabia nada além de inglês e orar. Lá, eu aprendi tudo novamente… eu olhava para o fim da paisagem e sentia que eu poderia morrer e nascer ali, e ali seria feliz. Eu me senti bem no Shara, me senti bem no silêncio do deserto.

E também foi extremamente conflitante, meu corpo espiritual encontrou com outras medicinas, outros dilemas filosóficos e espirituais. Encontrei com a escarces, a injustiça, a desvalorização da moeda local e com os dilemas do turismo contemporâneo.

Nossas orações tinham súplicas diferentes, nossos jejuns almejavam diferentes tipos de sobrevivência. Aprendi muito sobre o islamismo. Me dediquei a sentir a importância de cobrir nossos corpos, e comecei a senti essa vontade, de passar por multidões com uma presença inquestionável, mas tendo meu fenótipo resguardado. Isso é um aspecto da cultura, dentre eles existe também a violência, capaz de coreografar nossa fé…

Me senti recomeçando, eu estava me recuperando de uma depressão... a depressão é uma oportunidade de mudar nosso modo de viver e ver o mundo, isso é a coisa mais difícil que existe, e também a capacidade ao qual estamos geneticamente destinados a viver… mudar!




BL: Nos tempos mais recentes, você passou por alguns países viajando a trabalho e pôde constatar que cada contexto e território possui suas leituras próprias e seus delírios coloniais sobre raça e gênero. Tal fato, nos faz concordar sobre a importância de factíveis políticas de acesso no Brasil, que promovam uma maior circulação global de pessoas racializadas e das identidades dissidentes. Como essa expansão de consciência tem operado em seu processo de estudo do mundo e das relações humanas?

A humanidade é uma questão de fé, e a arte é a nossa fé operando milagres. A obra que construí na 35 Bienal de São Paulo conta meu posicionamento sobre essa vida planetária, sobre aquilo que é comum a todos, necessário a todos os povos: o fogo, as plantas, as cores e a fertilidade. O Brasil é uma grande barreira cultural frente a América Latina. Dentre os vários motivos para tal fato, existe esse desprezo político para com os povos originários daqui, e isso se alastra para com os outros países da américa latina.

Destruíram muitos laços indígenas que ultrapassam o Brasil, e dificultaram os que sobreviveram. Digo, as alianças ancestrais, que se materializam em caminhos dentro das matas, que ligavam territórios nacionais e internacionais, antes mesmo das nações existirem obviamente, e outros intercâmbios advindos do nomadismo. O próprio plantio da ancestral que gerou a Floresta Amazonica, algo tão grandioso, que, no entanto, somos educadas para enxergar como pequeno, inexistente, sujo, perigoso, primitivo.

Então o problema maior não é o fato de não falarmos espanhol, mas uma violência criada anteriormente, isso de separar, criminalizar, destruir os laços originários. Veja, estou falando de origem, novamente. O problema é sempre a origem forjada, pois é lá que colocamos o fundamento de um novo mundo. É muito importante olharmos para humanidade dessa forma, compreender que ja ocorreram muitos fins de mundo, e que a origem não é uma simples questão identitária amparada pela cor de pele. A própria história das populações originárias na América do Sul, é anterior ao que conhecemos...acredito que haviam migrações anteriores ao que nos é ensinado sobre Pedro Alvares Cabral. E por falar na Europa, é importante dizer que o pensamento de superioridade europeia sobrevive justamente porque não estudamos a história como deveríamos, não estudamos o que acontecia naquela região antes das invasões cristãs, digo, as medicinas, as espiritualidades, as ditas bruxas, as visões de mundo que antecedem o que sabemos nos acostumamos saber sobre a Europa e todo o arranjo politico-planetário dos últimos 100 anos.

Vivemos uma colonização particular, própria, diferente das outras que já ocorreram na história da humanidade. O pertencimento à terra e as formações de grupos culturais acontecem por outros caminhos, outros interessos, vivemos uma realidade diferente de nossos ancestrais culturais e humanos. A nossa coloniazacão interfere justamente na nossa origem, temos muita dificuldade de pensar sobre o que aconteceu antes de tudo, porque parece que tudo começou com povos europeus indo salvar a África de Satanás.  




BL: Método elementar é o nome do trabalho que vem desenvolvendo a partir de encontros de grupo, onde coloca em prática os conhecimentos da psicologia, arte e espiritualidade. Já que são dinâmicas que fazem parte do projeto Kalunga, a origem das espécies, poderíamos defini-las como instaurações suspensas no espaço-tempo? Ou seja, ao tratar clinicamente daquilo que é elementar, sob a perspectiva vida-morte contida em Kalunga, é possível criar uma situação temporal que sustente a imaginação para além do trauma racial?

Sim, é possível. O método elementar tem sido experimentado desde que eu iniciei minha graduação em psicologia (UFES) onde eu experimentei bastante as práticas de psicologia corporal e esquisoanalise em dinâmicas de grupo. Logo após eu me graduar, continuei tais estudos no mestrado, me tornando mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.  Então são já são 8 anos me dedicando a tais momentos clínicos de transe, suspensão, expansão, corporificação, e vibração.


Meus posicionamentos filosóficos nos reposiciona numa encruzilhada, e a partir dessa convergência de caminhos epistêmicos, muitas pessoas decidem pode nomear minha prática clínica de espiritualidade. Mas não quero resolver essa equação estranha num único resultado, quero sim estudar tais elementos que constitui essa trama e acompanhar seus desdobramentos.


Tenho entendido que estou trabalhando clinicamente sobre o que é elementar a nossa vida, e crio essas terapias coletivas para vivenciarmos tais elementos vitais: respirar, aquecer, esfriar, comunicar, se alimentar e movimentar-se. Então p tempo-espaço como conhecemos é muito importante, ou seja, preciso de uma casa segura para vivemos essas dinâmicas. O lugar também pode ser uma floresta, um deserto, e na praia, como já aconteceu. Mas precisa ser seguro materialmente, justamente para conseguimos transcender a realidade material. Essa realidade material racial, que gera ansiedade, delírio, psicose, angustia, dor muscular, gera loucura, saudade, medo.


A respiração é uma dadiva, a partir disso crio um repertório de exercícios, que é o Método Elementar,  afim de gerar uma força uma vibração coletiva. Respirar. Mergulhar. Sentir a diluição dos traumas. Submergir. Contemplar a beira do mar. Sentir o vento acariciando nossa pele, e o calor do sol se transformando em lágrimas. Lacrimejar. Continuar respirando profundamente e permitindo que a paz penetre nosso espírito e pensamento, e transforme nossa intuição. Isso é o Método Elementar.



BL: As pinturas produzidas no Marrocos estarão na 35ª Bienal de São Paulo. No mesmo período, também em São Paulo, você estará em exposição com Atitudes do tempo, obra que integra o projeto Kalunga, a origem das espécies e é uma reverência ao inquice Quitembo e ao orixá Tempo. O trabalho teve sua primeira montagem como capítulo 1, na Serpentine Gallery, em Londres, e agora é apresentado em dois atos: no Instituto Tomie Ohtake e na Galeria Mendes Wood DM. Como o público pode relacionar essas obras entre si? E o quão é fundamental trazer a espiritualidade de Tempo para esse momento?

CV: Quitembo e Tempo me ajudaram muito até aqui, sou eternamente grata a essas forças e sei que elas gostam muito de mim também.

Essa obra é uma forma de agradecer ao inquice e ao orixá, que são responsáveis pelas estações do ano, pela espera, pela chegada, são forças misteriosas... não sei descrevê-las muito bem. Sei dizer sobre o que fazem na minha vida… esse tempo de as coisas terminarem, o tempo das coisas voltaremos, o tempo que precisamos para entender, aprender, ensinar e amar… tempo que estranha, um tempo que da saudade... esse passado, presente e futuro, e aquele tempo em que tudo se mistura. Acho isso formidável, majestoso!

É fundamental falar de temporalidades nesse momento, porque muitas vezes precisamos sair de um ritmo temporal para consegui compreender a mensagem da vida. Ainda mais nesse contexto neoliberal, onde tudo está muito acelerado. Vivemos um tempo tão ansioso e fugaz. 

Esses três capítulos estão conectados, estou tentando misturar as histórias temporais das instituições, experimentando arvores diferentes, que fazem sentido em casa ocasião. Como seu eu criasse uma floresta para cada instituição em que eu estou trabalhando, e também portais conectados entre si.


Na Serpentine usamos Willow Tree/Salgueiro, na Mendes Woods usamos Ipê, sibipiruna, araucaia, grevilha... e na Tomie Ohtake estou trabalhando com troncos de Eucaliptos. Cada uma dessas árvores possui sua consciência, e sua história com a humanidade, seu uso medicinal, popular, misterioso.  As arvores vivem mais que nós, elas nos veem nascer e morrer e são capazes de contar sobre nossas vidas para outras pessoas. Eu gosto de pensar sobre a consciencia das plantas, e de como as plantar são nossas ancestrais fundamentais.

O uso das plantas é complexo, assim como sua existência. Vejamos a monocultura dos eucaliptos sendo responsável por tanto sofrimento de comunidades indígenas no Brasil. Uma questão que nos atinge em muitas camadas, e nos faz pensar em nossa responsabilidade de manipular as formas de vidas existentes.


Na Tomie Ohtake o público terá a primeira oportunidade de adentrar na floresta do tempo, estou superanimada para isso. Poder parar o dia e passar um tempo dentro da obra pode proporcionar uma experiência vibracional de descanso, algo que busco em minhas praticas espirituais. Sinto que toda minha disciplina espiritual é uma jornada para alcançar paz de meu espirito, e essas obras ao Tempo e Quitembo, arremata esse desejo de proporcionar momentos de paz a outras pessoas.



BL: Como futuro do projeto você vislumbra uma escola. Pode nos contar um pouco como estão esses planos e como você encara a educação em sua prática artística?

Eu sou apaixonada por X-Men! Um fato peculiar, eu sei! E desde pequena eu me imagino numa escola daquela, para pessoas com dons especiais, muitas vezes ridicularizadas pela sociedade. Essas pessoas geralmente possuem métodos incríveis de aprendizagem e ensino. Então com esse novo projeto, quero criar oportunidade para que possamos aprender sobre ciência, medicina, artes, espiritualidade, de outras formas. Eu mesma, na minha trajetória acadêmica, sempre recebo críticas de professores que o meu pensamento é muito rápido, e aprendi a não podar essa minha característica, mas lapidar, sim. Quero criar um espaço de troca, intercâmbio, de descanso também. Acho que chegou a hora de tornar esse lugar real! Meu próprio Instituto.